terça-feira, 9 de março de 2010

Retrospectiva II

 

Ele entra no carro. Ela estava em prantos. Ele mexe no cabelo, respira fundo, pergunta:

- O que foi agora?

Ela levanta o rosto, enxuga a última lágrima, olha pra ele, e ainda soluçando responde:

- Eu me apaixonei.

Ele não entende. Afinal, ela nunca foi muito fácil de entender. Ele arrisca:

- E o problema nisto é...?

Ela se irrita, bate no volante tantas vezes, com tanta força, que acerta a buzina, assustando o cachorro preto que deitava em frente ao carro.

Ela se recompõe, ajeita o cabelo e repousa sua mão direita sobre o lado esquerdo do rosto dele:

- Você não vê?

Ele não sente nada:

- Não.

Ela devaneia. Os olhos se perdem e a mão morre no rosto dele:

- Eu te amaria pra sempre.

Ela soa robótica. Ele não se importa. Tira a mão dela do seu rosto, e a segura com as duas mãos frias.

- Mas você vai me amar pra sempre.

Ela olha pra ele. Ele sorri. Ela se irrita, se sente debochada, ele nunca a levou a sério, os olhos dela acendem como duas fogueiras descontroladas. Ela faz um tipo de relincho, range os dentes:

- Não enquanto eu viver amando outro.

Com a mão esquerda, ela abre o porta-luvas, tira uma arma e a encaixa embaixo do queixo, beija-lhe a boca.

Ela treme, procura um jeito de abrir a porta enquanto o empurra contra ela. Acha. Ele cai no chão, sentado no asfalto.

Inerte, ela olha nos olhos dele e inclina a cabeça ate que esta deite no encosto de cabeça. Chora. Aponta a arma pra si mesma:

- Não se preocupe mais, meu amor.

Atira.

Ele levanta, chama vizinhos, polícia, bombeiros, ambulância.

Entra em casa, toma um banho para tirar o sangue.

Acaba o dia, se deita. Pensa:

-Louca!

segunda-feira, 1 de março de 2010

III

A menina ainda tentou salvar. Ela ainda tentou salvar aquele relacionamento atrasado, com sexo meia boca e traições constantes. Não se pode culpá-la. Depois de 6 anos, gente é uma coisa que gruda. De um jeito ou de outro, gruda. Eles tiveram medo no começo. Medo de que isso acontecesse. Tanto medo que fizeram promessas. Tantas promessas que nunca conseguiram cumprir todas. Então não conseguiram mais cumprir nenhuma. Então faltou respeito. Então faltou compromisso. Então faltou presença. Então surgiram outros. Então foi apagando. Porque alguém em sã consciência tentaria salvar algo assim? Ninguém vai mudar como promete. Ninguém muda um costume numa velocidade acima de 40%. Eu nunca medi estatísticas, mas 40 é uma velocidade baixa, não é?Se você tiver como base o 100% de uma relação de dois meses. Porcentagem está correto? Alguém aí sabe me dizer quando as coisas parecem ser pesadas demais, ao ponto de quase estancar no meio da estrada sem previsão de partida? Porque alguém tentaria começar de novo? Inércia é uma coisa que acostuma. Levar as coisas no impulso é uma coisa que acostuma. Ela tentou salvar pra fazer a boa imagem de mulher machucada. Mas ela se sentiu tão feliz e livre que quase agradece a ele pela coragem. Mas ela chorou pela consideração, se despediu e passou a noite pensando. No outro dia ligou pro outro, fez o que quis a noite toda sem culpa (o que fez com que o sexo não fosse tão bom dessa vez), depois saiu pra beber com as amigas.

Ele não quis ver ninguém. Queria paz finalmente, o alívio que merecia. Saiu da casa dela, foi para um bar, sentou, pediu uma dose, virou e pediu outra, virou e pediu outra, virou e pediu outra, virou, pediu outra. Respirou, olhou pro jogo do time dela jogando na TV, riu como se aquilo fosse algum tipo de castigo, pensou algumas coisas sobre o acaso e deixou o jazz entrar na sua cabeça. O jazz tinha uma voz e um baixo evidentes. Qual deles não tem, não é mesmo? Não se julgou um bom conhecedor. Poderia estar errado afinal. Mas era uma voz de mulher. Negra, provavelmente, diferente dela. Da menina. A negra deveria ter cabelos curtos, o rosto liso e um vestido prateado que escondesse um belo par de seios e coxas. Uma negra deve ter uma bunda enorme também, não é mesmo? Deve ser uma mulher muito fogosa.

- Ei, seu tarado! Vai beber isso aqui ou não?

“Tarado? Porque alguém me chamaria de tarado se eu ...” ele se pegou com a mão em lugares impróprios. Se assustou. Pediu desculpas além do que devia, deu o drink para mulher ao seu lado.

-Pode ficar, eu já bebi demais.

- Não bebeu. Quatro drinks não é demais. Não culpe a bebida pelos seus fetiches.

- Enfim, quanto deu, camarada?

- Já vai? Eu esperava te conhecer melhor.

E conversaram mais do que deveriam noite adentro. Ela, que era impaciente, convidou o cara para seu apartamento. Ele foi.Em 6 anos nunca tinha tido um sexo tão bom. Nem mesmo com as amantes. Ele segurava ela com tanta força que parecia raiva. Ela enfiava suas unhas tão fortes nele que parecia que ia arrancar pedaços. Parecia querer escrever seu nome nas costas dele.

Entre um gemido e um grito, ele olhou nos olhos dela, que se derretia em cima dele como uma mulher promíscua. Ela era tão perfeita que ele...

- casa comigo!

Ela parou. Olhou pra ele. Ele mereceu o tapa.

- Não. Continua.

E ele o fez. E no outro dia, ele acordou e ela já tinha ido. Ele dormia ao lado de um bilhete que dizia :

- Da próxima vez, traz o anel.